quarta-feira, 13 de abril de 2011

Sublmação e criação na contemporaneidade[1]


 
Elaborado por Freud em 1905, sob a égide da teorização inicial sobre a sexualidade, o conceito de sublimação inicialmente se confunde com o recalque em virtude de sua associação a uma espécie de recusa ao sexual, recusa que necessariamente implica a sua presença na fonte da criação advinda do processo sublimatório. Tal confusão, que começa a ser desfeita em 1908, é dissipada dois anos mais tarde no estudo sobre Leonardo da Vinci. A sublimação torna-se um mecanismo distinto do recalque, é a possibilidade de satisfação do sexual por vias que se distanciam do adoecimento neurótico e, por isso, Freud lhe atribui uma áurea de superioridade. Em termos metapsicológicos, a sublimação é caracterizada como um possível destino para a pulsão sexual, e estabelecida como um processo que diz respeito à libido objetal, na medida em que está em cena o redirecionamento da mesma para alvo e objeto não sexuais. Freud também aclara que este redirecionamento só é possível através da mediação do eu narcísico e sob os auspícios do ideal do eu e do mecanismo da identificação secundária; após a identificação do eu ao objeto, num retorno narcísico da libido ao eu, é possível a efetivação da sublimação através do investimento libidinal em objetos socialmente valorizados. Com esta caracterização, a sublimação em Freud adquire importância nos âmbitos individual e social – afinal, ela é postulada como uma via de satisfação que se contrapõe ao adoecimento neurótico e é postulada como colaboradora do desenvolvimento cultural. Entretanto, Freud assinala quão rara é a possibilidade de o mecanismo sublimatório se efetivar; e ainda observa que não se trata de levar o paciente à sublimação, pois é necessário que um quantum de satisfação se dê diretamente associada à sexualidade. Por sua vez, Lacan está de acordo com a essência da produção teórica sobre a sublimação em Freud, também situando este mecanismo como uma particular forma de satisfação pulsional pelo fato desta prescindir do recalque e ser desviada de seu alvo e objeto sexuais. Entretanto, Lacan enfatiza o desvio em relação ao alvo, reafirmando o caráter de plasticidade do objeto pulsional e sublinhando a presença do sexual, do erótico na sublimação. Situada na ordem de um gozo suplementar, a sublimação transcende o gozo fálico e possibilita o desprendimento do sujeito do lugar de falo para o Outro. Com a preocupação de demarcar a sublimação em sua íntima articulação com o campo pulsional e, ainda mais, no centro da economia libidinal, Lacan remete o processo sublimatório à das Ding, a Coisa freudiana, através da fórmula de elevação do objeto, pelas vias do imaginário, ao estatuto da Coisa. Desta feita, com o vínculo ao vazio da Coisa, o psicanalista francês situa a sublimação como anterior a todo recalque e independente dos ditames do eu e da vontade, primando por demonstrar a relevância deste conceito e sua não assimilação a ideais adaptativos e normativos, ou ao desejável socialmente. Ao mesmo tempo, a articulação da sublimação à pulsão, sua localização nos primórdios da organização e estruturação do psiquismo e a ligação com a Coisa que é marcada pelo que está de fora do campo representacional, vinculam-na ao Real, pulsão de morte em Freud, e à repetição. A sublimação é circunscrita por Lacan ao âmbito da ética psicanalítica, da responsabilidade do analista e, portanto, no eixo da clínica psicanalítica. A sublimação é uma via de expressão e satisfação com a qual o sujeito, eventualmente, pode contar, via que se constitui como caminho ou campo de subjetivação, e não apenas como reflexo de uma subjetividade latente. Sendo a sublimação uma via de satisfação que prescinde do recalque, a passividade sintomática é suplantada pela atividade do movimento pulsional que pode ganhar forma no ato criativo, momento no qual o sujeito se presentifica como autor no ato de produção de sua obra. Ato este que se efetiva a partir e ao redor do vazio, numa íntima relação com das Ding – furo central e originário na constituição subjetiva – e sem intermédio do eu ou compromisso com uma moral. O ato criativo pode ser traduzido como a possibilidade do sujeito dispor do vazio, vazio que é marca essencial da sua existência. Talvez seja possível afirmar que hoje os sujeitos apresentam uma menor disposição do vazio, pois a castração está menos assegurada e, consequentemente, é ainda mais difícil que estes sujeitos possam prescindir do significante do Nome do Pai uma vez que ele não se encontra bem estabelecido. Se nem mesmo o trânsito pelo campo do gozo fálico está garantido, é difícil pensar em sua suplementação no campo do gozo Outro e, portanto, vislumbra-se atualmente uma escassez, ainda maior do que aquela enunciada por Freud, da sublimação e do ato criativo.

Referências bibliográficas
1.CASTIEL, S. V. Sublimação: clínica e metapsicologia. São Paulo: Escuta, 2007. p. 144p.
2. FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade [1905]. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
2.FREUD, S. Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância [1910]. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud Vol XI. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
3.FREUD, S. Sobre o narcisismo: uma introdução [1914]. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud Vol XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
4.HARARI, R. O que acontece no ato analítico? Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2001. 291p.
5.LACAN, J. O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise [1959-60]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997a. 396p.
6.LACAN, J. O Seminário, livro 10: a angústia [1962-63]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985a. 366p.
7.POMMIER, Gerard. O desenlace de uma análise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990. 217p.




[1] O presente texto foi elaborado a partir da minha tese de doutorado com o tema “Sublimação, ato criativo e sujeito na psicanálise” defendida em 2010 junto ao Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina. A íntegra do trabalho pode ser acessada em www.letra-psicanalise.com.br ou www.cfh.ufsc.br.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

A psicanálise (ainda) é possível?


Freud elencou a psicanálise como uma das profissões impossíveis, ao lado do educar e do governar. Tal proposição pode soar muito estranha ao ser proferida por aquele que fundou e exerceu a psicanálise até o fim de sua vida, deixando um legado incomparável e essencial, até hoje, aos avanços da teoria e técnica psicanalíticas.
Entretanto, com alguma proximidade do campo psicanalítico é possível compreender a mensagem freudiana: a psicanálise é tarefa que exige compromisso de quem a pratica e de quem a ela se submete e, assim com o educar e o governar, é regida por uma ética, está implicada num contexto e está articulada ao laço social. A Psicanálise reconhece assim a impossibilidade da perfeição, da totalidade e da plenitude em seu exercício e em seus efeitos.
Desde a sua criação muitos proclamaram o fracasso da psicanálise. Não é raro o anúncio da sua extinção.  Alguns consideram ultrapassado falar de problemas pessoais, explorar idéias e refletir sobre a vida quando existem recursos como medicamentos, que prometem resultados sem esforços. Outros ponderam sobre sua suposta insustentabilidade frente à agitação, à falta de tempo e à necessidade de soluções rápidas que caracterizam o nosso cotidiano.
Então, não seria mais eficaz e/ou mais rápido, pois a modernidade ensinou que tempo é dinheiro, aprender algumas técnicas para solução de problemas ou aperfeiçoar a capacidade cognitiva para uma administração mais racional e lucrativa da própria vida? Ou, melhor ainda, buscar alguma opção medicamentosa que possa suprimir todas as dificuldades e sofrimentos que caracterizam a existência humana?
Acredito que as respostas a estas indagações dependem do conceito de eficiência que se utilize e da definição dada à condição de ser humano.
Freud iniciou seus trabalhos e desenvolveu a teoria e o tratamento psicanalíticos a partir do que ele identificou como mal de amor: uma inquietação da falta, vivida como falta de amor. Não parece que a inquietação do homem contemporâneo esteja distante disto, ao contrário, temos nos deparado com sujeitos desamparados, solitários, em busca de laços e do consumo como uma forma de encontrar a plena felicidade.
A psicanálise propõe a possibilidade de tratarmos esse vazio, esta condição de sermos seres faltantes, incompletos, buscando encontrar meios menos sofridos de viver e, portanto, de abordar a dor de existir. Assim, o conceito de eficiência distancia-se de uma promessa de felicidade atrelada à abolição de todo e qualquer sofrimento (por umas poucas horas!) e aproxima-se da aposta em um sujeito que se reconheça como desejante e responsável por seus atos e que, portanto, possa obter mais prazer em sua vida.
Mais do que possível, isso me parece bastante desejável e (porque não?) necessário.

Realinguagem


Numa homenagem póstuma ao psicanalista argentino Roberto Harari, o Realinguagem é um espaço para a circulação do discurso psicanalítico em suas vertentes teórica e clínica.
Harari* cunhou o termo a partir da proposição lacaniana de uma clínica do Real, não restrita aos limites do Simbólico, implicando na necessidade de se ir além do campo metafórico. Assim, a Realinguagem traz para a clínica a escuta e o trabalho com a vertente Real da linguagem, sempre com seus particulares enlaces ao Imaginário e ao Simbólico. Não mais apenas as palavras inteiras, mas seus fragmentos, balbucios, gagueiras, timbres e melodias da voz devem ser, como diz Harari, “audicionados” pelo psicanalista.
Este blog é um convite para este movimento de produção e inovação ao qual a psicanálise, há mais de um século, nos convoca.

*Harari, Roberto (2008).  Psicanalista, o que é isso? Org: Carlos A. Remor, Inezinha B. Lied, Tânia Mascarello. Rio de Janeiro: Cia. de Freud.